Às vezes você precisa encarnar a personagem pra descobrir que a encenação você estava era vivendo antes. A Amara criada pra ser homem, vigente até uns bons três anos atrás, com sua máscara de pêlos faciais e aquela virilidade quadradona toda, jogando as regras do jogo, fazendo o impossível pra que nem ela mesma se désse conta da encenação que vivia. Um dia, no entanto, eis que sento uma madrugada frente à TV e, depois de entrar em transe vendo “Priscila, Rainha do Deserto”, escrevo um poema que demorei anos pra me dar conta de que falava não de uma hipotética pessoa xis trans, mas expressamente de mim:
Não fossem seus pêlos vários,
pêlos pelas pernas, pelos
seios, rosto, seus cabelos
curtos, não teria páreo,
nem pra lhe conter armário…
não fosse e, de saias curtas,
decote e salto à la puta,
ia atrás de machos, mãos
brutas, a forçar-lhe o vão
virgem, como quem a estupra.
Dali em diante crise, crise dentro de mim anos e anos, até que, nossa, Carnaval de 2014, momento em que a máscara que eu nem sabia que tinha cai no que eu tentava encaixar a outra por cima, a da desentendida “MissUnderstood”, quando fui brincar de me montar e o frescor que conheci, a leveza, a liberdade, o foda-se tudo e mais um pouco não me permitiram mais voltar a ser o que eu até ali vinha sendo, o que queriam tanto que eu fosse.
Próximo passo, o peitinho doendo, querendo crescer de hormônio, faixa de gaze pra disfarçá-lo enquanto ninguém sabia, enquanto eu seguia posando de homem mas já arriscando uma saia, sandália, bolsa – a máscara caída, a decaída, quem só percebia era eu e eu não era besta nem nada, coragem vindo a conta gotas, cada avanço sem alarde sendo medido no espelho.
Doído me foi nascendo,
roçando a blusa, marcando,
eu tendo que disfarçá-lo,
faixas, enquanto nada sabiam.
Sozinha eu puxava, esticava a pele,
forçava dobras no espelho
pra ver, só pra ver,
se cresciam mais rápido,
não cresciam.
Havia ainda os pêlos
e pros pêlos laser
e sem pêlos, nossa,
o que era isso que eu via!
Dois dedos, enfim, dois dedos,
seios já o sabiam todos,
mas nada de faixa, quando muito bojo,
e mesmo sem bojo seios.
Mulher, o que sou, é o quê?
Algo no olhar, o jeito de mexer as mãos,
brinco talvez, ou o volume dos seios,
onde olham sempre pra saber se sou
e algo isso deve dizer.
Então e, sabe-se lá como, só então meus primeiros dias públicos de Amara Moira, já com esse nome próprio que roubei de Homero (cria dos livros, eu e meu destino amargo), plenamente estabelecida em São Paulo, toda síssi, emperequetada, peruca e penduricalhos, da Saúde, onde passei a morar, à Paulista e de lá o Arouche, belíssima carregando o cartaz “acredite ou não / sou eu sim / sim eu sou / ou não acredite” na Parada LGBT, maio de 2014. Mas o êxtase mesmo veio, na Blue Space, ao topar comigo amiga que me conhecia há década e nos apresentarmos e tirarmos foto, só bem depois ela se dando conta de que aquela era eu, agora Amara.
Foi inclusive difícil me livrar dessa belezurice toda, voltar a me sentir não só bonita mas Amara sem esses pós, batons e afins, maldição, invenção duma dragqueen que conheci três dias antes no metrô República, hoje amicíssima minha, e que cismou de me fazer ver no espelho o que até ali eu nem, imagino, ninguém acreditaria possível: essa Amara que, ai, por favor, desculpa, se não for incômodo, nem pedir demais, obrigada, eu gostaria que a partir de agora fosse o meu próprio nome, pode ser? “Pode sim mas, já que é pra ser Amara, que tal uma magiazinha nessa cara?” Eis o que ela me disse e Amara fez-se, espelho, espelho meu.
Só que, sendo eu incapaz de sozinha me produzir assim, a nulidade encarnada em artes cosméticas, depois dali não me restava senão depressão, espelho que não me deixava mentir, me sentir pavorosa dia após dia. E cadê coragem pra sair da cama, coragem pra pisar na rua, olhares me acompanhando aonde quer que eu fosse, ser que ninguém sabia ao certo dizer o que é mas que todos se permitiam olhar. Tocar também, bunda, coxa, peito, coisa que percebi cedo, assédio, meu corpo agora se tornando público, corpo travesti, e a primeira arma na cabeça a gente nunca esquece, polícia dando geral na Roosevelt, experiências, essas todas, que jamais me ocorreram nos vinte e nove anos que existi como homem, aquela máscara de pêlos faciais me servindo de escudo talvez.
Uma hora, chega, a confiança vem e se instala e nem mais peruca mas meus próprios cachos, eu toda dona de mim, toda ao natural, capaz de me olhar no espelho e me sentir Amara, capaz de devolver olhares a quem insiste em só saber me ver como a aberração que é.
E aí a chuva de perguntas básica, qual seu genital, nossa, essa obsessão, vontade incontrolável de saber o que diabos temos entre as pernas, e qual seu nome “de verdade”, defina “verdade”, e que história é essa de travesti bi? Bi só quem não for travesti, pelo visto, e tela azul quando me veem de mãos dadas com a minha namorada (“vocês são irmãs?”), alvoroço desde a primeira vez que trocamos beijos na Barra Funda, coraçãozinho aflito ao finalmente ir conhecer sua mãe em Perdizes. Como se comportariam ao ver poema que escrevi sobre ela, essa resistência de seu corpo em vestir-se?
QUASE
Seu vestido veste-se por baixo,
os pés primeiro, a tatuagem,
pele branca a se cobrir de azul.
Juntos entãos os joelhos,
mão repuxando o vestido,
perde-se de vista
o tufo de cabelos pretos.
Pernas já todo cobertas,
aguarda sem resistência
que chegue sua vez o umbigo.
Daí se divisam os pés,
num deles rama de flor,
rama quase raiz
que o vestido, em se vestindo,
como que arranca à terra.
Seios, um se revolta, enrosca
no vestido, recusa a coberta,
mas vêm as mãos,
mãos vêm “sem mas”,
e, da recusa em se deixar cobrir,
impresso em alto relevo
o bico apenas.
Travesti também faz poema e nem precisa ser de homem. Inusitado, né?
O passado longínquo, o não tão longínquo assim e o quase hoje, o que eles me permitem pensar do futuro, esse de amanhã mas também o de, se possível, daqui a uma década. Tempo passa corrido em São Paulo, ainda mais quando se é travesti, esses só trinta e pouquinhos anos que insistem em nos deixar viver. Só sei que da época em que eu camelava a Augusta com aquela máscara facial de pêlos pra hoje, a diferença é que agora eu preciso caçar lâmpadas por trás de cada olhar se eu quiser mesmo sair de lá viva.
Amara Moira é travesti, prostituta, doutoranda em teoria literária pela Unicamp, feminista e militante dos direitos de LGBTQIAs e de profissionais do sexo. Além disso, ela é autora do livro “E Se Eu Fosse Puta” (hoo editora, 2016), onde escreve das suas experiências na prostituição por uma perspectiva feminista ao mesmo tempo que literária, buscando apresentar ao leitor em detalhe a vida a que temos direito enquanto travestis, enquanto prostitutas.
ERRATA:
Este é o texto original escrito por Amara Moira para o livro “São Paulo em palavras”, cujo conteúdo no livro saiu diferente.
Pedimos desculpas à autora.
Equipe Aquarela Brasileira